quinta-feira, 25 de setembro de 2008

1973


Carmino avistou Adriana e Lílian conversando, mulheres floridas no canteiro da criançada. Adriana, cada dia mais bonita, cada dia mais deliciosa. Quando Carmino pensava nela, parecia que se conheciam desde sempre, que nunca faltaria assunto entre os dois, que podiam passar a vida inteira de mãos dadas, rindo na roda-gigante da quermesse. Mas ali, no pátio da escola, cada metro era infinito, suas pernas amoleciam e ele esquecia as palavras todas. Quando os olhos de Adriana fulgiram na sua direção, Carmino agarrou o braço de Rodolfo André e apontou para o lado oposto:
--Vamos pra cantina. Preciso tomar uma caçulinha.

Guilherme Vasconcelos

O Mundo Acabou em 1973, pág 17, Ed 7Letras

Imagem: Sebastian Fritzon (Suécia)-- www.flickr.com/photos/sebastianfritzon/

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Classificados

Quarentão romântico. Situação financeira boa, artista de inteligência aguçada, magro, cabelos e barba ruivos (rala) pretendendo morar em Hollywood para dirigir filmes daqui a cinco ou seis anos.
Apaixonado, bem-dotado, procura uma companheira inteligente, careta, trabalhadora, sedutora, sem preconceitos, adulta intelectualmente e com vivência do mundo contemporâneo. Não importa que tenha filhos, pois serão meus também. Tenho de vez em quando uma cruz (+) na glicofita e saúde quase perfeita. Ansioso para nessa idade encontrar uma companheira para vivermos juntos e felizes.
Espero resposta pela Caixa Postal m. 743.

Raul Seixas

O Baú do Raul – Revirado, pág 184, Ed. Ediouro

Abaixo, o “candidato”:

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

As palavras














... sim senhor, tudo o que queira, mas são as palavras as que cantam, as que sobem e baixam... Prosterno-me diante delas... Amo-as, uno-me a elas, persigo-as, mordo-as, derroto-as... Amo tanto as palavras...as inesperadas... As que avidamente a gente espera, espreita até que de repente caem... Vocábulos amados... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho... Persigo algumas palavras... São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as... Deixo-as como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio presentes da onda...

Pablo Neruda

Confesso que Vivi – no capítulo “As palavras”.

Enviado por Fernando Pacheco Jordão e Eduardo Matosinho

Foto de Zannaza69 (Itália) – mais fotos dela:

fiveprime.org/hivemind/User/zannaza69

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Caminhantes

Não importava o que tão animados se diziam: eles mesmos eram para serem vistos, como a cidade. E se alguém os visse de longe enxergaria um saltimbanco e um rei. Caminhar depressa os alegrava – o rei sorria e era belo, o saltimbanco se esforçava em caretas de graça: havia um descontrole mecânico no caminhar de ambos – eram uma só pessoa com uma perna curta e outra comprida, a beleza do rapaz e o horror, a flor e o inseto, uma perna curta e outra comprida subindo, descendo, subindo. Por vezes o rapaz parecia andar para a frente e a moça ao redor dele dançava: era quando ele sorria divino e puro, e Lucrécia Neves falava – e assim os outros viam.

Clarice Lispector

A Cidade Sitiada, página 46, Ed. Rocco



Blue-Red, Iren Tarvid -- http://fineartamerica.com/profiles/iren-tarvid.html

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Prefeito sincero

CEMITÉRIO -- 243$000

Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.

Graciliano Ramos, quando prefeito do município de Palmeira dos Índios, em trecho do 2 relatório ao Sr Governador Alvaro Paes, de Alagoas, publicado pela imprensa oficial de Maceió em 1930. Em: Viventes das Alagoas, Ed Record, página 182.

Site do escritor (iniciativa de sua família, com boas informações): www.graciliano.com.br

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Corazones

“Todo depende de los hombres, de sus corazones, de la firmeza con que luchen por sus ideales, de la simplicidad que pongan en sus acciones, del respecto que sientan por los compañeros...”

PALAVRAS DO CAMARADA PROFESSOR ÁNGEL

Trecho do livro Bom Dia Camaradas, de Ondjaki, apresentado como “grande revelação da literatura angolana”. Agir Editora, 2006

Observação: romance autobiográfico do tempo em que era menino e adolescente, aluno de professores cubanos que foram a Luanda como voluntários, em 1975.

Enviado por Fernando Pacheco Jordão.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Livros

Na espécie de tela colorida de diferentes estados, que minha consciência ia desenrolando simultaneamente enquanto eu lia e que iam desde as aspirações mais profundamente ocultas em mim mesmo até a visão puramente exterior do horizonte que tinha ante os olhos; o que havia de principal, de mais íntimo em mim, o leme em incessante movimento que governava o resto, era a minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, qualquer que fosse esse livro.

Marcel Proust

Em Busca do Tempo Perdido -- No Caminho de Swann, Volume 1, página 77 (Editora Globo)









Caspar David Friedrich, 1832

Labirinto

O labirinto é uma imagem universal de busca do conhecimento. O herói do labirinto é Teseu, aquele que penetra por seus caminhos, aventurando-se através do desconhecido.

Lucia Leão

O Labirinto da Hipermídia -- Arquitetura e navegação no ciberespaço, página 83 (Editora Iluminuras)

No filme abaixo Teseu é uma adolescente, Minotauro é David Bowie e a busca é por um bebê.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Pedra Bonita e do Reino

As agitações sertanejas, do Maranhão á Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos siquer. Tomemos um facto, entre muitos, ao acaso.
No termo de Pajehú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em fórmas caprichosas, na serra Talhada , dominando, magestosos, toda a região em torno e convergindo em largo amphitheatro accessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquelle, como pulpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário – a Pedra Bonita.
Este logar foi, em 1837, theatro de scenas que recordam as sinistras solennidades religiosas dos Achantis. Um mameluco ou cafuz, um illuminado, alli congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se á pedra, annunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela acção miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ella em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.
Passou pelo sertão um frêmito de nevrose....

Euclydes da Cunha

Os Sertões, página 143, Ed: Livraria Francisco Alves, Paulo de Azevedo & C. (12 edição corrigida)

Comentário: a pedra “Bonita” citada por Euclydes é, transposta para a literatura, a pedra do “Reino” (são a mesma pedra, digamos assim), do Romance d`A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna, adaptado pela TV Globo em 2007. Na microssérie para a TV o “holocausto” acima aparece, de modo transfigurado, logo no primeiro capítulo. São manifestações do Sebastianismo, ou a crença no retorno de dom Sebastião que voltaria do além-mar para criar o reino da justiça divina na terra.

Abertura da microssérie:

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Sapateiros

Somos sapateiros. Devemos fazer sapatos, bons sapatos. Para que fabricar pulseiras e brincos? Sapateiros, bons sapatos.

Graciliano Ramos

Memórias do Cárcere, Volume 4, página 39, Ed. José Olympio, por volta de 1936.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Paris,Texas

(1) DESERT LANDSCAPE Exterior, Day

A fissured, empty, almost lunar landscape -- seen from a bird' s-eye view.
The camera hovers over it.
In the distance, a lone man appears; he is crossing this desert.
A hawk lands on a boulder.
The man stops, looks at the bird. Then he drinks the last drops of water from a large plastic bottle.
He is wearing a cheap Mexican suit, a red baseball cap and sandals with bandages wrapped around them. His clothes are covered with dust and soaked with sweat. He has been walking for a long time. This is Travis.
Travis throws away the empty plastic bottle, and continues on his way across the bleak, hot plains that lie before him.

Roteiro de Paris, Texas, seqüência inicial, filme de 1984 de Wim Wenders, roteiro de Sam Shepard. (em Paris, Texas, página 7 Ed. Road Movies/Greno)

A cena: http://www.youtube.com/watch?v=W5GqTOXb8yQ

Motel Chronicles















(Foto:Pocheco/Sarah Nichols/www.pocheco.us)


His feet were sweating in the night. He could feel the presence of the automatic pistol, of cattle, of barbed wire, of dice, of riding the night range without a flashlight, of bars plunged into prairie night.
He turned off all the lights in the room and lay on the floor between the two beds. His feet were sweating. He punched the switch of the Realistic tape machine and Stevie Wonder answered the darkness: "Songs in the Key of Life".
He watched an Apache Sand painting appear on the wall out of nowhere. Collors from the land: pale orange sand, chocolate topsoil, pale blue like a tear. He could see yhe glint of Abalone shimmer off the pistol stock. Threads of rosy light. Spinning. He could see his own heart.
He could feel the demonic attachment of a man for his only woman.

Março/1979 San Marcos, Texas

Sam Shepard

Motel Chronicles, página 48 (citado em Paris, Texas, editora Road Movies/Greno, pág 5).

terça-feira, 6 de maio de 2008

Irreverência em tempos de adversidade

SIM, ESCOLA TAMBÉM. Às vezes eu até em alemão obtinha boas notas. Muita coisa eu não gravei da leitura de textos alemães, somente alguns autores me ficaram na memória: um deles chamava-se Adolf Hitler, autor de "Mein Kampf", leitura obrigatória. Nosso professor de alemão, Schmitz, um homem de uma aguda, graciosa, irônica secura (para alguns autores seco demais!), usava os textos sagrados desse autor Adolf Hitler para nos ensinar a concisão de estilo, chamado de sintético. Isto significava que nós tínhamos que tomar cerca de quatro páginas do "Mein Kampf" e reduzi-las para duas, se possível para uma e meia: "condensar aquele indescritível alemão mau escrito, cheio de divagações e encaixes infelizes (existe também um bom alemão com divagações e encaixes infelizes!). Imaginem: "reduzir" os textos do Führer. Eu tinha prazer em desmontar aquela espécie de alemão e rearrumá-la. Assim, eu lia com atenção "Mein Kampf" -- leitura que não aumentou nem em um décimo de milésimo o meu respeito pelos nazistas. Em todo caso, eu devo ao autor Adolf Hitler alguns Bs em alemão, que eu bem que estava precisando, e lhe devo também -- alguma coisa a mais eu aprendi na escola para a vida -- possivelmente uma certa aptidão para a editoração e uma tendência para a concisão. Até hoje me surpreende o fato de ninguém ter percebido a irreverência que significava "reduzir" os textos do Führer -- também para mim isto só ficou claro muitos anos mais tarde, quando percebi todas as implicações dessa tarefa escolar. E só muitos anos mais tarde, depois de 1945, quando o profesor Karl Schmitz, que constantemente sofria de dor de cabeça, e que às vezes vinha tomar em nossa casa, na rua Schiller, um café comprado no mercado negro, é que eu lhe manifestei todo o meu respeito e agradecimento.

Heinrich Böll

O que vai ser desse rapaz? (Editora Marco Zero, página 43)

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Inédito


Casa de vidro na noite do cerrado.
Casa de vidro com gramado no teto,
moderno supremo que tomou o sertão.

Eduardo Simantob -- Inéditas

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Morar no Rio

Desci à avenida Atlântica, chuviscava, a praia estava deserta, as águas escuras e crespas. Busquei abrigo num quiosque, e me perguntei se algum dia saberia viver longe do mar, em cidade que não terminasse assim num acidente, mas agonizando para todos os lados.

Chico Buarque

Budapeste, página 41 (Companhia das Letras)

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Bagdá,1991,início da guerra

Estávamos agitados demais para dormir. Um pouco depois das duas horas da manhã, Mark Biello começou a instalar as Câmeras nas janelas, para o caso de acontecer alguma coisa lá fora. Nic estava conversando comigo.
Olhei pela janela. Não havia lua no céu de Bagdá, "uma noite de bombardeio", alguém me disse certa vez, no Vietnã, quando os aviões podem chegar sorrateiramente, sem serem vistos.
Nic inclinou a cabeça para o lado. Estava ouvindo aviões? Eu disse que ele devia estar sonhando. Ele atravessou o corredor para um quarto com as janelas abertas e voltou correndo, muito corado.
--Todos os cachorros da redondeza enlouqueceram. Estão latindo como desesperados -- gritou ele.
Radar de cachorro?
No minuto seguinte, um relâmpago imenso iluminou o céu. Olhei para Nic. Parecia que as suas entranhas tinham descido para as calças. Balancei a cabeça, sem poder acreditar. Os entendidos haviam dito que o presidente Bush devia esperar alguns dias antes de começar o bombardeio.
O estacato dos tiros confirmou o começo da guerra. Olhei para o relógio, para gravar no tempo o momento histórico: 2:32h da manhã.

Peter Arnett
Ao vivo do campo de batalha -- do Vietnã a Bagdá 35 anos em zonas de combate de todo mundo (Ed Rocco, página 422).

Meu comentário: neste mesmo dia e hora (17 de janeiro de 1991) eu estava na Maison de La Radio, em Paris, onde trabalhava como produtor da seção América Latina da Radio France International; alguém disse para ligar a TV, começara a guerra; vi na tela esverdeada os rastros amarelados dos tiros e pensei: "É guerra de verdade". Na TV francesa o locutor anunciou: "La troisième guerre mondiale a commencé".

Veja a transmissão da época: http://www.youtube.com/watch?v=3xhDkzH9z80

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Aurora em SP

Perus olhava. Agora a lua, só meia-lua e muito branca, bem no meio do céu. Marchava para o seu fim. Mas à direita, aparecia um toque sanguíneo. Era de um rosado impreciso, embaçado, inquieto, que entre duas cores se enlaçava e dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza e o branco do céu, buscava um tom definido, revolvia aqueles lados, pesadamente. Parecia um movimento doloroso, coisa querendo arrebentar, livre, forte, gritando de cor naquele céu.
Entrou no salão, mal reparou nas coisas, foi para a janela. Uma vontade besta. Não queria perder o instante do nascimento daquele vermelho. E não podia explicar aquele sentir aos companheiros. Seria zombado, Malagueta faria caretas, Bacanaço talvez lacrasse:
--Mas deixa de frescura, rapaz!

João Antônio
Malagueta, Perus & Bacanaço (Ed Ática -- página 66).

Artist

The artist is the creator of beautiful things.
Oscar Wilde
The Plays of Oscar Wilde (Preface, Ed Wordsworh Classics)